Chuva



Eu nunca tinha visto uma chuva tão forte. Não eram gotas, era como se o mundo tivesse desabando em água. Era como estar embaixo de uma cachoeira do tamanho de uma cidade. Todos os bancos e lojas da Paulista tinham sua própria fonte, já que os bueiros não suportavam mais a água e esguichavam pra fora. Tive que, por duas vezes, jogar meu carro em cima da calçada, porque a água em alguns pontos estava atingindo quase um metro de altura. Era impossível não pensar no 2012, por mais que eu ache esse papo maluco e chato.

Por causa do trânsito parado, só restavam às pessoas assustadas dentro de seus carros, olhar para as pessoas muito mais assustadas que não estavam dentro de lugar algum. Homens achando graça de dentro de padarias. A típica risada nervosa de quem se culpa por não poder e no fundo nem querer ajudar os outros. Quase carecas protegendo a cabeça com pastas, ao saltar de táxis para suas reuniões (e quem é que pensa em dinheiro quando o mundo pode acabar? Sempre tem alguém que pensa). Pessoas saltando de ônibus e correndo desesperadas. Crianças chorando. Mães carregando filhos já grandes no colo. Mocinhas encharcadas falando ao celular, como se desse pra pedir delivery de tempo bom. Gordinhos correndo como podiam, como dava, causando um misto de vontade de rir e raiva na gente. Não sei explicar a raiva.

Até que uma mulher começou a atravessar o farol na minha frente. Bem devagar pra não cair. A água estava quase nos joelhos dela. Ela olhou séria pra mim, me informando que, caso o farol abrisse, que eu esperasse o final vagaroso de sua travessia porque assim ela queria e, porque sofria tanto, queria do tamanho do mundo. E todo mundo respeitou em silêncio. Fascinado por ela que, sem cara de nojo, atravessava os esgotos da Paulista de chinelinho dourado. Tenho certeza que qualquer doença imunda ficou com medo dos seus pés. Ela usava uma camisa branca que já estava colada no seu corpo. Mas a sem-vergonhice também tinha medo dela. Tanto que não dava pra ver nada. Ou nem pensamos nisso. Com a mão esquerda ela carregava uma bolsa de camurça fajuta toda manchada pela chuva. Com a direita ela tirava uma franja lateral que insistia em cair nos olhos. Bem devagar pra não perder os chinelos dourados ou pra não cair ou, simplesmente, porque não adiantava mais ter nada a não ser essa coisa que, apesar de tudo, nos leva vivos pra casa. Era isso, o mundo que não se controla. A ordem caótica que, de repente, vira apenas caos e pensamos "como é que tinha ordem antes mesmo?". E ganha quem tem mais desespero no peito. E o dela era tão enorme que a enchia da adrenalina da paz. O ponto máximo do pânico. Se movia como uma iogue

Como crescem as árvores. Era a natureza vencendo do outro lado do rio. Era sobrevivência pura sobrando depois de todos os estágios de socialização. Motoristas de ônibus, se pudessem ou soubessem, teriam assoviado algo bem clássico e feminino pra ela. Ou uma dessas músicas que se compunha para heróis de guerra. Ou esposas de reis. Se ela chegasse do outro lado da avenida Paulista, filhos continuariam nascendo, Natais continuariam sendo celebrados e pães quentinhos continuariam saindo nas primeiras fornadas do dia. Vamos, mulher.Vamos, minha filha, você não tem a menor ideia de que porra estamos fazendo aqui. Se dói tanto amar, porque continuamos. Se dá tanta solidão pagar contas e impostos, porque continuamos. Se as relações são feitas também de tanta maldade, por quê? Se arranhamos e beliscamos tanto só pra tocar alguém.

E ela chegou do outro lado depois do farol ter aberto e fechado duas vezes. Continuamos olhando pra ela até que as buzinas começaram.

Senti que poderia oferecer uma carona, mas preferi pensar que se ela conseguisse, sozinha e com medo e com frio e com a raiva sempre apaziguada pela sua própria força, eu também ia conseguir.

Autora: Tati Bernardi


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